O que é e o que não é FALA
Comecemos pelas negativas: fala de dramaturgia não é transcrição de fala da vida real, nem é papo, muito menos papo furado.
Na vida real, duas pessoas se encontram, se põem frente a frente e falam, hesitam, divagam, trocam informações que interessam, em princípio, a elas duas e a mais ninguém. Não entendendo o que foi falado, uma pessoa pode replicar "O que?" e a outra pode responder, repetir, explicar o que falou. E, ao começar a se entediar, a pessoa pode indicar isso à outra.
Num palco de teatro ou num set de gravação, dois personagens se encontram e a posição dos dois corpos não é mais frente a frente. Eles têm de "abrir", se mostrar para a plateia ou para a câmera, de modo que o espectador possa não só ouvir o que falam, mas também ver os seus gestos e reações. E personagens não podem responder a espectador que replicar "O que?", nem reagir ao que indicar tédio.
Assim, tanto faz se, na massa da estória imaginada, as falas se pautam por gíria realista, como nos filmes Cidade de Deus e Pulp Fiction, ou pelo pentâmetro iâmbico, como nas peças de Shakespeare: narradores não costumam acolher pontos de foco não-pertinentes, informações excessivamente redundantes, sintaxe quebrada demais, nem as hesitações e divagações que costumam inflar as falas da vida real. Narradores sabem que, se se entediar ou não entender o que se fala, o espectador se desconecta, vai embora. Passemos às afirmativas.
Fala é a emissão verbal oral
E falar é uma forma de agir.
Um personagem pode informar ignorância através de uma fala ou de um gesto, pode expressar alegria através de uma fala ou de uma dança, pode reagir a uma ofensa com uma fala, com uma expressão facial ou com um soco. Mas costumamos diferenciar as falas das demais ações.
Uma fala pode ser lírica, épica ou dramática
É lírica a fala cuja função principal é expressar uma subjetividade.
É épica a fala cuja função principal é relatar uma informação.
É dramática a fala cuja função principal é motivar reação de outro personagem.
Na página 50 do roteiro de Chinatown, após ter sido arrastado por uma enxurrada de água, Jake Gittes desabafa a sua revolta no sapato caro e chique que perdera: "Merda de sapato Florsheim. Merda".
Por ter como função principal expressar uma subjetividade, essa é uma fala lírica.
Nas páginas 31-2, Gittes chega à casa da sra. Mulwray, o mordomo chinês pede que aguarde e Gittes fica ao lado de um pequeno lago, a observar o trabalho de um jardineiro japonês. A água não para de correr para dentro do lago, o jardineiro examina a água e diz para Gittes: "É luim pala a glama..."
Essa é uma fala épica, cuja informação Gittes não entende de pronto - nem nós. O jardineiro informava que água salgada "é ruim para a grama".
Num texto curto mas de grande influência na dramaturgia mundial, Luigi Pirandello se insurgiu contra a presença de elementos épicos no palco - que ele chamou de "elementos de descrição e narração" - e preconizou que o dramaturgo procurasse palavras que fossem "ação falada", isto é, que fossem dramáticas, que motivassem reação de outro personagem.
Na página 56 do roteiro de Chinatown, após receber um cheque da sra. Mulwray, Gittes diz:
Com essa fala, Gittes objetiva motivar reação: forçar a sra. Mulrwray a revelar o que está escondendo. Essa é uma fala dramática.
Como elemento dramático que é, uma fala dramática tem duplo foco: aquilo que o personagem fala e o que ele objetiva com o que fala.
Fonte: CAMPOS, Flavio. Roteiro de cinema e televisão - A arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar uma estória. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. P. 186 a 188.
Na vida real, duas pessoas se encontram, se põem frente a frente e falam, hesitam, divagam, trocam informações que interessam, em princípio, a elas duas e a mais ninguém. Não entendendo o que foi falado, uma pessoa pode replicar "O que?" e a outra pode responder, repetir, explicar o que falou. E, ao começar a se entediar, a pessoa pode indicar isso à outra.
Num palco de teatro ou num set de gravação, dois personagens se encontram e a posição dos dois corpos não é mais frente a frente. Eles têm de "abrir", se mostrar para a plateia ou para a câmera, de modo que o espectador possa não só ouvir o que falam, mas também ver os seus gestos e reações. E personagens não podem responder a espectador que replicar "O que?", nem reagir ao que indicar tédio.
Assim, tanto faz se, na massa da estória imaginada, as falas se pautam por gíria realista, como nos filmes Cidade de Deus e Pulp Fiction, ou pelo pentâmetro iâmbico, como nas peças de Shakespeare: narradores não costumam acolher pontos de foco não-pertinentes, informações excessivamente redundantes, sintaxe quebrada demais, nem as hesitações e divagações que costumam inflar as falas da vida real. Narradores sabem que, se se entediar ou não entender o que se fala, o espectador se desconecta, vai embora. Passemos às afirmativas.
Fala é a emissão verbal oral
E falar é uma forma de agir.
Um personagem pode informar ignorância através de uma fala ou de um gesto, pode expressar alegria através de uma fala ou de uma dança, pode reagir a uma ofensa com uma fala, com uma expressão facial ou com um soco. Mas costumamos diferenciar as falas das demais ações.
Uma fala pode ser lírica, épica ou dramática
É lírica a fala cuja função principal é expressar uma subjetividade.
É épica a fala cuja função principal é relatar uma informação.
É dramática a fala cuja função principal é motivar reação de outro personagem.
Na página 50 do roteiro de Chinatown, após ter sido arrastado por uma enxurrada de água, Jake Gittes desabafa a sua revolta no sapato caro e chique que perdera: "Merda de sapato Florsheim. Merda".
Por ter como função principal expressar uma subjetividade, essa é uma fala lírica.
Nas páginas 31-2, Gittes chega à casa da sra. Mulwray, o mordomo chinês pede que aguarde e Gittes fica ao lado de um pequeno lago, a observar o trabalho de um jardineiro japonês. A água não para de correr para dentro do lago, o jardineiro examina a água e diz para Gittes: "É luim pala a glama..."
Essa é uma fala épica, cuja informação Gittes não entende de pronto - nem nós. O jardineiro informava que água salgada "é ruim para a grama".
Num texto curto mas de grande influência na dramaturgia mundial, Luigi Pirandello se insurgiu contra a presença de elementos épicos no palco - que ele chamou de "elementos de descrição e narração" - e preconizou que o dramaturgo procurasse palavras que fossem "ação falada", isto é, que fossem dramáticas, que motivassem reação de outro personagem.
Na página 56 do roteiro de Chinatown, após receber um cheque da sra. Mulwray, Gittes diz:
- A senhora abre um processo contra mim e desiste do processo mais rápido que peido de pato - desculpe...Depois, me pede para mentir para a polícia...(indica o cheque) Isso pode parecer que a senhora está me pagando para ocultar evidências...Acho que está escondendo alguma coisa, sra. Mulwray.
Com essa fala, Gittes objetiva motivar reação: forçar a sra. Mulrwray a revelar o que está escondendo. Essa é uma fala dramática.
Como elemento dramático que é, uma fala dramática tem duplo foco: aquilo que o personagem fala e o que ele objetiva com o que fala.
Fonte: CAMPOS, Flavio. Roteiro de cinema e televisão - A arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar uma estória. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. P. 186 a 188.
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